Semana Monteiro Lobato e polêmicas


 

O mês de abril terminou e com ele acabou-se mais uma “semana Monteiro Lobato” , criada em Taubaté cidade natal do escritor, teve sua primeira edição entre 11 e 18 de abril de 1953, obra dos intelectuais taubateanos Cesídio Ambrogi (1893-1974), Gentil de Camargo (1900-1983) e Urbano Pereira (1902-1968) com o apoio do então prefeito Felix Guisard Filho e o deputado Jaurés Guisard. 

Como praticamente tudo na vida do escritor tal iniciativa não deixou de ter a marca da polêmica, uma vez que parte da alta sociedade taubateana e principalmente o clero catolico repudiavam a obra do escritor, que viam em seus livros principalmente os destinados aos adultos uma espécie de insulto ao povo de Taubaté, Urupês e Cidades Mortas foi visto como a caricatura do povo taubateano, insultando o orgulho da elite que naqueles idos da década de 50 já não brilhavam tanto como na época da primeira república. 

Os ataques as comemorações foram significativos, constou de inúmeros artigos em jornais locais, declarações raivosas de clérigos nas rádios, afirmações de que a obra de Monteiro Lobato era um receituário para tornar as crianças comunistas, até uma pira iconoclasta foi acesa no Colégio Diosesano, prédio onde hoje funciona o Colégio IDESA, onde os alunos foram obrigados a trazer de casa um exemplar de um livro de Lobato para ser queimado em fogueira pública no pátio da escola.    

Mais a despeito de rancores e recalques a semana prosperou, enquanto o ressentimento de Taubaté se diluía no transcorrer do tempo e hoje é uma comemoração que alcança praticamente todo o território nacional. Mais para não perder o costume,  vamos de polêmica mais uma vez; Na referida data é comum as escolas enfeitarem suas dependências, principalmente as de Educação Infantil, com temas lobatianos ligados  sua principal obra, O Sítio do Pica-pau-amarelo, quase sempre inspirados no design que a TV Globo adotou no início dos anos 2000 em mais um dos muitos remakes da série que se inspira nas obras do autor. Músicas são cantadas, versinhos e jograis são declamados por crianças enfeitadas de Emília, Narizinho e Pedrinho, cartazes e os benditos enfeites de EVA, abundam com voracidade nas paredes de escolas, da mais humilde a até o mais elitista colégio particular.    

A grande polémica e ironia (não que o pensamento educacional brasileiro não esteja recheado deles) neste enredo é que a obra comemorada raramente é lida. Em princípio na Educação Infantil, alega-se que os textos são grandes (realmente o são, eram livros não crônicas) com linguagem antiga e rebuscadas, cheio de expressões regionais, o que dificultaria o entendimento das crianças. Para os do Ensino Fundamental quando a escola possui uma biblioteca, é recomendado o empréstimo e geralmente as ações ficam por isso mesmo. A grande questão é que o texto lobatiano é sem dúvida uma das grandes obras primas da literatura infantil mundial, é seu regionalismo que encanta e não tira sua universalidade. Veja como exemplo os Grimm, a castelos e reinos, esses refletiam um lugar e tempo muito apreciado para o público ao qual os autores escreveram inicialmente, a classe média letrada e nobreza da Alemanha do século XIX, da qual  inclusive, é de suas tradições que derivam muito de seus contos, e nem por isso não reconhecemos o caráter universal de contos como a Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho. 

Mais com as obras de lobato as coisas como sempre são mais complexas, além da baixa exposição aos textos originais outro fator pode ser causa de um dificultador na leitura para os pequenos, ou mesmo para alunos maiores, a grande quantidade de termos racistas e sexistas nas histórias, termos que já começam na primeira página da primeira obra, “Reinações de Narizinho” onde Tia Nastácia é descrita como “negra de estimação” e segue por toda a obra como o retrato do preconceito da época, sempre descrita como ignorante, medrosa e cheia de mitos, Nastácia é a boa negra, cria de casa, quituteira de mão cheia, tendo a cozinha como seu mundo, não possui família ou passado independente, em muitas histórias nem vontade, como quando em “Viagem ao Céu” foi deixada na lua para ser cozinheira de São Jorge sem ao menos ser consultada e dito pelas crianças ser um privilégio cozinhar a um santo de tamanha importância.

Polêmicas à parte, é claro que a obra de Monteiro Lobato deve sim ser oferecida às crianças, primeiro pela sua riqueza de imaginação e linguagem, por dialogar tanto com o mundo infantil, por ensinar sem recorrer ao pedantismo pedagógico ou ao moralismo de paróquia e acima de tudo porque é muito gratificante de ler. Contudo é necessário uma contextualização do texto, um profundo debate sobre algumas passagens, vou exemplificar isso numa história pessoal: 

Em 2012 desenvolvi um trabalho com uma turma de crianças do 1º ano (6 anos de idade) onde leriamos durante o semestre todo o livro Reinações de Narizinho,como o livro é grande a cada dia avançamos alguns trechos que posteriormente eram discutidos em roda de conversas e vez por outra contextualizados em desenhos ou mesmo encenações teatrais que só ficaram dentro da sala de aula, por fim também estudamos sobre a vida do escritor e por estarmos perto de Taubaté nosso projeto culminou com uma visita a "Chácara do Visconde” o Museu Monteiro Lobato local onde o escritor passou boa parte de sua infância.

Pois bem, em uma dessas rodas de conversas uma aluninha a Bruninha, bem despretensiosa me pergunta: - A Narizinho não tem pais nem mãe? A dúvida foi natural uma vez que a ascendência de Pedrinho é amplamente contada e para Narizinho Lobato não reservou nem uma linha sequer. Confesso que naquela semana comecei uma exaustiva corrida pela resposta, a princípio achei que seria fácil, mas a internet não me trouxe na época nenhuma resposta, então recorri a ex professores da universidade, em vez de achar respostas, acabei disseminando a dúvida nos meios acadêmicos, pior ainda, bem na Universidade de Taubaté berço dos lobatianos contemporâneos mais aguerridos. Por fim foi a sorte que me trouxe a tal resposta, escarafunchando o humilde acervo da biblioteca pública de Lagoinha me deparei com uma rara publicação “A menina do nariz arrebitado” livro anterior a Reinações de Narizinho que Lobato abandonou por seu caráter pedagógico e meio moralista, reescrevendo e transformando na obra que conhecemos hoje como Reinações de Narizinho, pois bem, lá primeira página, Lúcia é descrita como a neta órfã de Dona Benta. Levei o achado todo feliz às crianças que ficaram muito satisfeitas com o empenho do professor, contudo semanas mais adiante, Bruninha novamente voltou com preocupações sobre Lucia; - Professor, a Narizinho não vai na escola? Bom Pedrinho visita o sítio nas férias escolares uma vez que é morador de São Paulo. A escolaridade de Narizinho não é mencionada, em Reinações, bom desta vez a academia nem os antigos volumes iam me salvar, e tivemos que fazer toda uma contextualização da época, conversamos sobre direitos femininos, acesso à escolarização na zona rural, zona rural que na minha cidade é muito presente no cotidiano da maioria das crianças. Bom o papo foi longo e indubitavelmente chegou aos termos racistas empregados aos personagens negros, discutimos sobre a posição de Tia Nastacia em contraste com Dona Benta e como Narizinho refletia o pensamento da época sobra a posição da mulher na sociedade, mesmo que essa descrição viessem de uma pessoa tão vanguardista como Monteiro Lobato, mas que não passou impune as marcas do seu tempo nem ao meio em que foi criado. 

Acho que por fim a elite taubateana da década de 1950 só sentiu na pele o que os privilegiados da época da infância de Lobato exprimiam e o pequeno neto do homem mais poderoso da região (o Visconde de Tremembé) absorveu, e agora que o esplendor do café passou e o dinheiro e prestígio se foram, são eles que são o “Jeca” tão insultados pelos antigos coronéis e barões, ironicamente seus pais.  


Referências


Almanaque Urupês, Como Surgiu a semana Monteiro Lobato, acessado em 04/05/2021 às 9H30, disponivel em <<https://almanaqueurupes.com.br/index.php/2020/04/15/como-surgiu-a-semana-monteiro-lobato/>>



Irmãos Grimm, Wikipédia, acessado em  acessado em 04/05/2021 às 09h00, disponível em << https://pt.wikipedia.org/wiki/Irm%C3%A3os_Grimm#Contos_de_Grimm >>


OLIVEIRA, Lucas Renan Cavalcante, Plo Mundo de Lobato, relatório de atividades, EMEI “Arco Íris” Lagoinha-SP, 2012 


Oswaldo Barbosa Guisard e a Semana Monteiro Lobato, minidocumentário, acessado em 04/05/2021 às 10h20, disponível em   <<https://www.youtube.com/watch?v=BRzipri1IqM>>


OLIVEIRA, Lucas Renan Cavalcante, Plo Mundo de Lobato, relatório de atividades, EMEI “Arco Íris” Lagoinha-SP, 2012 


Anexos



      Por curiosidade uma das atividades era fazer um desenho de

Monteiro Lobato, e o desenho que eu usei para

ilustrar o relatório foi o da Bruninha.


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