CRÔNICA

UMA SEMANA COM FLAVINHA E ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE MOVIMENTAÇÃO, SAÚDE E ESPAÇO

Nossa sociedade por vezes (se não sempre) possui atitudes esquizofrênicas, contradizendo-se o que fala e cultua com ações completamente inversa ao que prega nossos tão acalentados meios de comunicação. Estou a falar dos problemas relacionados à obesidade e falta de exercícios físicos que nossos crianças, ou parcelas delas são obrigadas a se sujeitar, vamos exemplificar isso ilustrando um típico cotidiano, escolheremos como protagonista Flavinha:
Flavinha tem cinco anos mora com a mãe e o pai em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo, sua cidade tem pouco mais de 15 mil habitantes, é pacata, as ruas se estendem a poucos metros da praça central, núcleo do povoado.
Flavinha é filha única, Doroteia sua mãe tem 25 anos é professora e Tadeu seu pai 24 anos é pedreiro. A família embora não sendo rica tem vida tranquila, casa própria, presente do pai de Doroteia que doou o terreno e Tadeu a construiu-o. A casa é de meio lote, mas muito bem feita, sala cozinha, bom banheiro, dois quartos, o de Flavinha é todo decorado com temas infantis, possui até uma pequena TV cor de rosa sob a cômoda de igual cor. O quintal é minúsculo, mas bem arrumado, Tadeu é muito caprichoso, fugindo a regra de que em casa de ferreiro espeto de pau. Mesmo assim não sobra muito espaço para Flavinha brincar.
Embora ainda pequena Flavinha tem uma rotina bem agitada, com cinco anos já é uma veterana na escola, entrou ainda bebê na creche, a mãe precisava trabalhar e com a recém inaugurada creche e com generosa oferta de vagas ( em cidades do interior sobram vagas) não ouve dúvidas ou solução paliativa. Mas voltemos ao cotidiano de Flávia, a pequena acorda cedo, na casa todos acordam, a mãe da aulas no ginásio e o pai trabalha onde esta a obra, como a cidade é pequena ninguém faz uso de transporte, a família possui um carro, um popular dos anos 90 bem conservado que só é usado para o trabalho quando Tadeu pega uma obra na zona rural ou em algum município vizinho. Pois bem, Flavinha levanta-se faz a higiene matinal toma seu café, ainda não largou a mamadeira, se arruma e vai para a escola que esta no caminho do trabalho da mãe, não é mais que dez minutos caminhando. Mesmo sendo pré-escolares, mesinhas em fileira, muita lição no papel (tem que aprender a escrever logo) durante as aulas pode se ir ao banheiro uma vez antes do recreio e mais uma após. Vez por outra a professora libera alguns brinquedos para que possam ser usados no canto da sala, bem quietos e sentadinhos para não atrapalhar os que ainda não terminaram. Flavinha por vezes reclama com a mãe que as perninhas doem de tanto ficarem sentados, mas a mãe acaba tranquilizando a filha, - Escola é assim mesmo.
Mas logo chega o recreio, fila indiana, meninos à direita, meninas a esquerda, no pátio lavar as mãos e comer a merenda sentada, após o lanche Flavinha pode brincar um pouco. O pátio é pequeno, todo cimentado, nos cantos os inspetores jogam alguns brinquedos plásticos, as instruções são claras, brinquem a vontade mais não corram, nisso os inspetores são severos, não querem crianças se machucando, existem muito degraus na escola, volta e meio um inspetor castiga algum menino mais afoito que é pego em desabalada carreira no meio do pátio, quase sempre acompanhado, esse é detido e fica até o fim do intervalo, sentado vendo as outras crianças a “brincarem comportadas”. Volta à sala mais algumas horas sentadas, uma vez por semana vídeo na sala de vídeo nova, moderníssima, com TV de LED e uma ampla e variada coletânea de DVDs infantis. Não há parque na escola. As maioria das mães gostam da escola, bem conservada, muito limpinha, pátio cimentado, não da trabalho para lavar o uniforme.
Ao fim das aulas é a vó de Flavinha, mãe de Doroteia quem vai busca-la, a mãe ainda esta a trabalhar e só volta depois das seis. Flavinha passa o período da tarde na casa desta avó, lá chega troca de roupa, almoça, ela adora refrigerante e mesmo a mãe evitando isso no cardápio a avó fica com dó da menina e sempre lhe oferece um copo nas refeições. Após o almoço acompanhado de uma guloseima como sobremesa, um doce, uma bolacha recheada, (Flavinha adora as recheadas de morango) a menina fica a ver desenho até às quatro da tarde, a casa da avó também é pequena e o quintal não oferece muitos atrativos para a menina.
As quatro Flavinha toma seu lanche, leite com achocolatado e por vezes um pão com manteiga ou alguma bolacha doce. Após o lanche Flavinha vai brincar um pouco, gosta da sala, liga a TV no canal infantil e brinca quase sempre com suas bonecas ou seus blocos de montar.
As seis a mãe chega, conversa um pouco com avó e leva a garota para casa.
Em casa Flavinha gosta muito da novela das seis, a única que a mãe permite a menina assistir, não tem tantas cenas pesadas. Flavinha dorme cedo, banho as oito, janta as nove, nesta não tem refrigerante, e nove e meia, já está na cama dormindo para no dia seguinte a rotina se repita novamente.
Os fins de semana são mais amenos, a mãe sempre tem um ou outro curso, esta fazer pós-graduação, por isso só chega depois das cinco, à menina fica então com o pai, ele odeia trabalhar aos sábados e como tem muito pouco tempo para ficar com a ela aproveita o período, levantam cedo tomam um belo café, com direito a suco de laranja e tudo, depois vão ao playground da cidade, o único parquinho feito pela prefeitura, a menina adora brincar na areia o pai é maluco por fotografia e deve ter mais de mil fotos de Flavinha brincando no parque. Nesta ocasião sempre almoçam fora no restaurante da praça, Flavinha adora lasanha, o pai libera o refrigerante. Depois voltam para casa, Flavinha toma um banho e vai dormir um pouco enquanto o pai abre o laptop e vai ver as fotos que tirou.  
No domingo a família gosta de ir ao sítio dos pais de Tadeu, seu João o avô já recebe a neta com Barnabé um cavalo velhinho e manso arreado, andar a cavalo é coisa que a menina adora. No sítio Flavinha não para, os barrancos, formigueiros e qualquer reentrância nas pedras são motivos para múltiplas brincadeiras, lá a menina esquece até da televisão, o almoço sempre é farto e quase sempre a sobremesa não deixa a desejar.
Flavinha volta cansada, toma seu banho e antes das oitos já está na cama, descansar pois a semana já começa e a rotina é daquelas, mesmo para Flavinha.
Bom senhores pelo que vimos nossa amiga Flavinha tem um cotidiano muito comum a milhares de outras crianças neste país, embora não seja de uma abastada família também não podemos enquadrá-la como uma criança com sérios riscos sociais, moradora de lugares insalubres e com família disfuncional, assolada pelas drogas e violência urbana. Nem que Flavinha disponha de deploráveis recursos públicos, como escola de latas ou de chão batido, o problema aqui que eu quero ressaltar é cultural e de organização:
Reparem que a rotina de Flávia, não lhe propícia nenhuma oportunidade de exprimir movimentação característica de sua idade, com exceção dos sábados no parque, a limitação de movimentos de Flavinha é constante, em casa e na casa da avó pela falta de espaço, na escola pela ausência de estrutura e pela negligencia em se montar um projeto que contemple essas necessidades, as desculpas são, falta de espaço físico adequado e medo de que as crianças se machuquem. Contudo fica claro que movimentação e exercícios físicos não são realidade e nem prioridade na vida de Flavinha.  O que mais me assombra neste quadro, não é a falta de percepção da família de Flavia em relação às consequências para sua saúde. Mais sim a falta de estruturação do único espaço público que a garota frequenta todos os dias, espaço que foi projetado e é administrado por profissionais que a priori deveriam ser especialistas em crianças e em como se desenvolvem, mas que ao invés disso ficam a repetir velhos bordões e velhas ideais de contenção e disciplina. E acreditem as coisas tendem a piorar, a movimentação será ainda mais restrita nos anos subsequentes de estudo de Flavinha, pois a medida que avança a pouca preocupação com o tema despenca, chegando ao período colegial, etapa em que Flavia estará passando pela puberdade e todo seu corpo está em radicais transformação as oportunidades serão quase nulas, as aulas de educação física local que deveria ser epicentro destas preocupações se convertem na maioria dos casos em treinos para as equipes formadas pelos afortunados que a vida brindou com chance e dotes físicos para praticar um esporte enquanto que a imensa maioria fica pelos cantos das quadras a conversar, comer salgadinho (provavelmente Flavinha estará neste grupo) e sim a perder tempo com uma aula tão inútil e discriminatória.
Claro que uma boa porção dos professores de Educação Física, principalmente os que se enquadram na geração formada pós anos 90, já possuem uma visão bem distinta da importância de sua disciplina e a meu ver, são hoje os profissionais da educação melhor qualificados e com a mente mais aberta de todas. Melhor qualificados, pois devido à natureza de sua graduação não é qualquer centro universitário que possui tais cursos, quase sempre acontecendo perto das faculdades de enfermagem e medicina de onde emprestam muito de seus laboratórios e aparelhagem, Evitando assim o alastramento vergonhoso de cursos a distancia com sua qualidade duvidosa mais de grande apelo, devido à baixa exigência acadêmica e preços acessíveis.
No mais Flavinha vai crescendo numa sociedade que cultua a beleza física sob os estereótipos da magreza e de músculos definidos, onde somos bombardeados com conselhos sobre boa alimentação e rotina saudável mais que não oferece oportunidades de movimentação a nossas crianças e que com práticas que negligenciem as necessidades biológicas da infância contribuem para alimentar ainda mais a  ideologia do ócio, onde, quanto mais parado e menor o esforço melhor.  






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