CABELOS E RACISMO
Como neste período turbulento
e como disse em uma “live” um querido professor, nestes dias pandêmicos
não teria como deixar de comentar sobre esses assuntos, raça, racismo,
preconceito, discriminação, assuntos delicados, principalmente quando tocamos
no sagrado solo da Educação Infantil, lugar que a priori deve se ver livre
destes ascos da vida em sociedade, mas como sabemos não está imune a nenhum
deles. Mas antes permita-me contar uma pequena história, confessar uma pequena
macula do meu caráter (nada sério) mas vamos:
Nosso humilde escrito segue a
foto que acima ilustra, sem dúvida talvez seja a foto mais emblemática que
nossa pequena escola já registrou, seja pelo momento a situação que registra ou
pela estética, sem dúvida ficou extremamente bonita, apesar da simplicidade e
de ser registrada com um simples celular (não tão simples, foi na verdade um
Iphone), isso me incomodou pois nos mais de 15 anos de atividades docentes e
pelo menos dez de fotografo amador de escola e apesar de fotos belíssimas que
registraram momentos impar no cotidiano escolar, nenhuma delas (e devem ser
mais de 10.000, sem exagero) chegou aos
pés da beleza e importância deste registro fotográfico.
Mas vamos a história da foto;
Ela foi retirada em 2018 numa sala de crianças de 3 anos, o motivo da alegria
da menininha foi segunda as palavras dela: “- Que legal encontrei uma boneca com
o cabelo igual ao meu!”
Não se engane que isso seja
tão simples, afinal isso foi fruto de meses de ou até anos de debates com os
docentes sobre a importância de se dar visibilidade aos diversas etnias na
composição dos nossos bonecos, foi uma preocupação construída, seja nos
brinquedos seja nos acervos da biblioteca escolar, na composição dos cartazes e
nas leituras e escolhas de músicas.
Mas qual a importância disso
na realidade? Para quem acorda todo dia e vê seu tipo físico representado de
forma positiva em todos os lugares, como TV, campanhas publicitarias, outdoors
e brinquedos, acredito que passe despercebido. Mas pense em uma criança negra,
cuja seu tipo étnico sempre causou discriminação, sua única representatividade
na TV são escravos ou nativos tribais quase sempre mostrados de forma
pejorativa, os brinquedos só mostram tipos europeus, bonecas então ressaltam indiretamente
o tipo nórdico como paradigma da beleza, nos contos de fadas a ilustração
sempre prioriza o arquétipo da bela princesa e do valente príncipe, quase
sempre loiros dos olhos azuis. Indiretamente o mal embora não seja representado
por ninguém da raça negra, é associado a escuridão ao negro, o manto da bruxa,
o castelo mal iluminado, o cavaleiro negro entre outros. Aliados a isso vemos a
representação dos modelos de beleza ou de normalidade e é ai que as coisas
começam a se complicar, pois quando falamos de normalidade pensamos no comum,
no corriqueiro e qualquer forma de anormalidade acaba nos agredindo. No caso da
criança negra cuja a estética e fenótipo numa sociedade racista como a nossa
não costuma ser associada a infância ou pelo menos ao que deveria a infância
ser, isso acaba sendo muito cruel.
André, Alves e Camargo 2005 em seu artigo sobre a representação da infância pela televisão nos deixa uma importante reflexão:
“A televisão, com sua roupagem ideológica, estimula o consumo, mas não apenas o consumo de mercadorias, de objetos comuns , mas a mercadoria identificação, uma vez que "o produto mais procurado hoje não é mais uma matéria-prima ou máquina, mas uma personalidade" (Guimarães, 2003, p. 26). Então, a imagem infantil torna-se também uma mercadoria despertando assim o desejo, mesmo sendo resultado de uma concepção ideológica burguesa idealizada.”(246)
Infelizmente a criança negra está
totalmente deslocada desta concepção burguesa de infância. Querem um exemplo
prático, vá até o buscador de internet Google, vá a opção imagens e digite
“criança bonita” e veja o resultado uma profusão de olhinhos azuis e verdes,
mas seria o motor de busca e seus algoritmos membros da Ku Klux Klan? Nem tanto
o que os algoritmos do Google fazem é indequisar as palavras chaves ligadas a
imagem, pois aos se construir uma página na web para facilitar as buscas os
construtores geralmente associam uma imagem a várias palavras, ou essa busca é
feita via subtítulo da imagem. Em resumo o mecanismo de busca reflete o que a
sociedade pensa e compartilha e não uma suposta inclinação racista de seus
idealizadores. E infelizmente a em nossa sociedade a concepção de infância
esbarra no padrão racial branco, só lembrar o lamentável cartaz do governo
federal no lançamento do programa econômico de retomada pós pandemia do covid
19 onde apenas crianças nórdicas foram escolhidas para a peça
publicitaria.
O CABELO E A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE NEGRA
Não serei extenso neste tópico
mas cabe dizer que em se tratando da construção da identidade negra o cabelo é
um traço fenótipo de vital importância, ele é o simbolismo puro da condição
discriminatória da raça negra que se empoem desde a mais tenra idade, lembro-me
na infância as afirmações de uma velha comadre de minha avó, que dizia: -
Cabelo de menino tem que ser curtinho, de menina se for bom, tem que ser grande
e se for ruim tem que cortar bem curtinho para não dar trabalho de pentear, nem
de ficar feio. A fala carrega todas as mazelas de nossa sociedade, atribuindo
características pejorativas ao cabelo negro, principalmente o feminino e ao
cortá-lo, prende-lo e tolher seus cachos é um jeito significativo de tolher a
pessoa negra como ela é. Anos mais tarde essa mesma comadre ficou admirada
quando uma de minhas colegas da pós graduação foi em casa, era uma moça negra
com um penteado afro estonteante e sem a mínima vontade de se esconder.
Outro aspecto que nos preocupa é a precoce transformação dos cabelos das crianças para que estes através de processos químicos agressivos se assemelhem mais aos padrões lisos e soltos, além do possível dano a saúde das pequenas envolve um arcabouço de ideias e interferem na construção da auto imagem infantil.
Vê-se assim como a manipulação dos traços fenotípicos
possuiu diferentes significados no que se refere à construção de uma identidade
negra ao longo dos anos. Se em um polo encontramos a ideia de que alisar o
cabelo implicaria a negação de uma identidade étnica, fruto das investidas de
uma sociedade racista, no outro se verifica uma atitude de busca de integração
do negro e afirmação de uma raça mais “evoluída” culturalmente. Ambas as
ideias, no entanto, passam por uma imposição de comportamento e podem ser
entendidas como meio de controle dos corpos, uma vez que estabelecem condições
para construção do “ser negro”.(CASTRO, KABENGELE, 2017,P.105)
Aquela criança quando encontrou uma bonequinha com o “cabelo parecido ao seu” expressou uma espécie de alívio, ao mesmo tempo triste, pois ela demorou a encontrar, mas mostra a preocupação da escola em contemplar essas necessidades.
Obviamente ainda a muito o que
fazer, pois sabemos que a primeira comunidade que a criança tem contato é o
núcleo familiar e este na maioria das vezes tenta de todo modo protegê-la do
racismo, embora por vezes ele principia por lá. Mas é sobretudo na escola e
hoje em dia cada vez mais precoce na Educação Infantil que estes problemas
sociais são apresentados aos pequenos e é justamente ali que as primeiras
iniciativas devem ser tomadas, com um debate franco e aberto sobre o tema, por
mais difícil que o seja. Contudo não basta a Educação Infantil fazer a parte
dela, cabe aos outros segmentos dar continuidade a esse trabalho pois cada fase
da vida da criança e do adolescente o racismo assume formas diferenciadas e
diferenciadas formas de combate são necessárias. Se na Educação Infantil o
pequeno mal entende o que ocorre, nos demais segmentos o sofrimento pode ser
solitário e talvez mais cruel. Cabe uma ação educacional conjunta e lucida
sobre o tema, mas pelo sorriso da garotinha já demos o primeiro passo.
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